Felipe Prestes

A Assembleia Legislativa aprovou nesta terça-feira (02) a venda de três estatais que têm em comum a atuação na área de energia, a CEEE gerando, transmitindo e distribuindo energia elétrica;  a Sulgás distribuindo gás natural; e a CRM produzindo o carvão que alimenta usinas termelétricas. Mas para especialistas ouvidos pelo Sul21, isso não significa que o Governo do Estado tenha um plano específico para a energia. As privatizações estariam mais vinculadas a uma visão de mundo. 

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“Eu acho que foi uma infeliz coincidência. Como o governo não tem uma política energética, não está preocupado com o que vai acontecer no futuro. E aí se fosse uma fábrica de sabão, ou de kilowatt hora, aparentemente, tudo se reduz a cifrões. Eles não vão vender as escolas porque talvez não tenha quem compre”, afirma o professor do Departamento de Engenharia Elétrica da UFRGS Luiz Tiarajú dos Reis. 

Ele aponta que o Estado teria outra forma de resolver seus problemas financeiros, como cobrar o ressarcimento pela Lei Kandir, e, no caso específico da CEEE, resolver a questão dos funcionários ex-autárquicos, que trabalhavam na antiga Comissão Estadual de Energia e, após ingressarem na CEEE, a companhia nunca conseguiu incluir as despesas com eles na tarifa. Servidores calculam que a empresa pode receber até R$ 8 bilhões do Governo Federal em uma ação referente a este tema, mas, enquanto isto, os ex-autárquicos geram um passivo para a CEEE. “Como não foi detalhado o processo de venda, aparentemente esses custos vão ficar com o Governo do Estado. Então, as obrigações ficam e o patrimônio vai. Realmente isso aí é para satisfazer alguma diretriz ideológica”, conclui Reis.

Gladis Bordin, também professora do Departamento de Engenharia Elétrica da UFRGS, tem visão semelhante: “Eu não vi o Governo apresentar um plano energético para o Estado. É uma coincidência de ter essas empresas. São grandes empresas e um patrimônio considerável que pode voltar para o Estado um dinheiro, que é o que eles querem de imediato, para sanar as questões financeiras, mas não como um projeto”.

Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

O professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP Ildo Sauer entende que se trata de uma questão ideológica. “É uma visão de mundo”, resume. Sauer recorda que uma onda liberal ressurge nos anos 1970, tendo como laboratório a ditadura chilena, depois sendo aplicada na Europa e nos Estados Unidos, por nomes como Margareth Thatcher e Ronald Reagan. “O mundo entra em crise e se atribui isso ao gigantismo do Estado e aos direitos dos trabalhadores”. 

No Brasil, segundo Sauer, esse processo se iniciou com Fernando Collor, teve certo refluxo com Itamar Franco, e uma retomada “com todo ímpeto” no Governo FHC. Com os governos do PT, as políticas liberais foram amenizadas, mas não revertidas. No Rio Grande do Sul, Antônio Britto foi o primeiro governador a lançar mão do ideário neoliberal. Gaúcho de Campina Das Missões, Sauer participou de debates na Assembleia Legislativa, sobre as privatizações propostas por Britto, nos anos 1990. “Eles prometiam que a venda das estatais se fazia para abater a dívida pública, reduzir as tarifas e aumentar a qualidade dos serviços. A dívida pública aumentou, as tarifas aumentaram muito acima da inflação e a qualidade não melhorou”, afirma. 

Antes dessa nova onda liberal, as empresas que prestam serviços de interesse público já tinham sido privadas. No caso da energia elétrica, só em 1959, quando Leonel Brizola encampa a empresa estadunidense Bond & Share, é que o Estado passa a ter uma empresa pública. “Eu tive um professor que dizia que, lá no fim da década de 50, aqui no Rio Grande do Sul não se conseguia ligar um motor”, recorda Luiz Tiarajú dos Reis. “Então, o Governo do Estado encampou as empresas, criou uma companhia de energia elétrica, até que no final da década de 90 se decidiu privatizar dois terços dessa companhia. O serviço que essa companhia prestava era razoavelmente bom. Progressivamente a gente foi notando que caiu a qualidade do serviço”, diz. 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Queda na qualidade e aumento de tarifas 

Os especialistas ouvidos pelo Sul21 apontam as consequências desta visão de mundo que o Governo do Estado tem levado a cabo: aumento das tarifas, redução dos postos de atendimento ao público, ficando mais restrito a meios que dificultam as reclamações, como os serviços de telemarketing; e também o crescimento das terceirizações. “Vai ter uma redução dos quadros de funcionários, porque uma empresa privada vai querer ter lucro, vai fazer contas. Então, ao desprezar uma experiência de um setor que fornece um insumo básico e contratar uma pessoa com menos experiência, nós consumidores sentiremos os efeitos disso. E vai ser uma energia mais cara porque vai ter que recuperar o investimento que foi feito, pelo menos em um primeiro momento”, afirma Gladis Bordin. 

Outra consequência é o mau atendimento nos locais mais afastados e empobrecidos. “Se queima um fusível lá na ponta de um ramal, mandar uma equipe trocar esse fusível não é rentável. Então muitas vezes as empresas deixam esse fusível aberto, deixam o consumidor dois, três dias sem energia, porque seria muito oneroso mandar uma equipe lá para restabelecer o serviço”, relata Luiz Tiarajú dos Reis.

Além disto, o próprio fato de abrir mão das empresas demonstra a falta de um planejamento, pois o Estado vai perder grande parte de sua capacidade de ingerir sobre a questão energética. “O pessoal não percebe que uma empresa como essa pode alavancar outras ações do Governo do Estado. Só é visto o problema, e não os benefícios que possam ser advindos”, afirma Luiz Tiarajú dos Reis. 

Foto: Divulgação RGE

“Estão fazendo discursos que dificilmente se viabilizarão”

No contexto nacional, o Governo do Estado parece estar afinado. A privatização da CEEE se dá no momento em que a Eletrobras está se desfazendo de ativos. A venda da Sulgás também coincide com a venda de subsidiárias da Petrobras na área do gás natural. No mês de junho, a estatal vendeu 90% de sua participação na Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG) para o grupo formado pela franco-belga ENGIE e pelo fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec (CDPQ) por R$ 33,5 bilhões. “A Petrobras vendeu a casa para morar de aluguel”, afirma Ildo Sauer. 

Também em junho, o Conselho Nacional de Política Energética publicou diretrizes para aumentar a concorrência no mercado de gás natural, que envolvem a venda de mais ativos da Petrobras no transporte do combustível e também incentivos para que os estados vendam suas distribuidores. O objetivo é reduzir o preço do insumo, especialmente para baratear a atividade industrial. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirmou que para cada 10% de redução no preço do gás haveria 2,1% de incremento no PIB industrial. Já o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, afirmou que o plano poderia reduzir o custo da energia em 40% em dois anos. 

“Estão fazendo discursos que dificilmente se viabilizarão”, afirma Ildo Sauer, que foi diretor de Gás e Energia da Petrobras, entre 2003 e 2007. Segundo Sauer, os gasodutos são investimentos caros, que necessitam de segurança para sua implementação. A concorrência só deve acontecer depois que o país já tiver uma malha com múltiplos gasodutos. Sobre a venda da TAG por R$ 33 bilhões, prevê com isso um aumento no custo do gás natural, e não uma diminuição, como prega o Governo Federal. “O valor da venda foi festejado, mas isso vai se refletir no preço da tarifa”, diz. 

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O professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP ressalta também que nos estados em que o gás natural foi privatizado, se pratica as tarifas mais caras. Além disto, rebate o argumento do Governo do Estado para a venda da Sulgás, de que a empresa irá se expandir com o ingresso de capital privado.  “Isso é bobagem pura, porque ninguém investe com dinheiro próprio. Projeto bom é feito com financiamento do BNDES ou de outras fontes. São falácias”. 

Apesar de os chineses estarem cada vez mais entrando no setor energético brasileiro (só na distribuição de energia elétrica no Rio Grande do Sul já são donos de dois terços), Ildo Sauer não vê um risco direto à soberania do país. “O risco que se falava antigamente, de uma possível sabotagem, não há”, diz. Porém, aponta outros problemas. “Existem capitais chineses interessados em investir onde tem alta lucratividade. O capital vem em busca de remuneração. Então este dinheiro sai do país. O investimento estrangeiro vira uma sangria de divisas”. 

O Sul21 enviou perguntas ao secretário de Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos, sobre a política energética do Estado há dez dias, mas não obteve resposta. 

* Correção: o nome da professora da UFRGS é Gladis Bordin e não Gladis Barros como informado anteriormente 

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1 comentário

José Miguel Pinheiro Bittencourt · 3 de julho de 2019 às 14:24

Perfeito o artigo. Só que no fundo o problema e dinheiro e poder. Nós somos um País subdesenvolvido onde a cultura ainda engatinha, e só uma minoria burguesa tem acesso a educação de Primeiro Mundo que a tudo decide. Vivemos sob o tacao americano e europeu que ainda hoje decidem para onde vai a maré. A China se aliou a isso a seu modo e já e a Segunda Economia Mundial. Enquanto não mudarmos viveremos de sobressaltos, para frente e para trás.

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